Reflexão: “o caso de Anna Ó” e o complexo de Electra
O Complexo de Electra é uma fase do desenvolvimento psicossexual das crianças do sexo feminino; de acordo com a psicanálise, nessa etapa a filha passa a se sentir atraída pelo próprio pai, disputando com a mãe a atenção deste homem. Normalmente esta fase surge entre os 3 e os 6 anos, porém pode variar de acordo com cada indivíduo e o seu grau de desenvolvimento. Na maioria dos casos, o complexo ocorre porque o pai é o primeiro contato que a menina tem com o sexo oposto. Também existe uma fase análoga ao Complexo de Electra para os meninos, à qual é conhecida como Complexo de Édipo, na qual o menino sente desejo por sua mãe.
Os complexos foram definidos por médicos diferentes, sendo que o complexo de Édipo surgiu originalmente descrito por Sigmund Freud, enquanto a expressão Complexo de Electra foi criada pelo psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung, em referência ao mito grego de Electra.
De acordo com a mitologia grega, Electra era filha de Clitemnestra e Agamemnon. Ficou imortalizada por ter planejado a morte da própria mãe, como uma vingança por esta ter assassinado o seu pai. Na perspectiva de Freud, o Complexo de Electra é referido como Complexo de Édipo Feminino.
Anna O. é o nome fictício dado a Bertha Pappenheim pelo médico Josef Breuer para proteger a identidade ao publicar seu livro escrito em parceria com Sigmund Freud, ‘Estudos sobre a Histeria’. Bertha (1859-1936) foi acompanhada por Breuer entre os anos de 1880 a 1882, na época tinha 21 anos. Este caso foi considerado um marco zero para a psicanálise, sendo o primeiro caso registrado; o livro foi o primeiro trabalho de grande repercussão da psicanálise.
Bertha Pappenheim, Anna O, foi diagnosticada como histérica pelo famoso médico vienense Joseph Breuer. A jovem judia de família ortodoxa, moradora em um elegante apartamento em Viena, estava recolhida em seu quarto sofrendo de contraturas, de paralisia no lado esquerdo do corpo, mergulhada em um mutismo, quando recebeu os primeiros cuidados do Dr. Breuer. O sofrimento de Bertha começou a partir dos cuidados que dispensara a seu pai Sigmund Pappenheim, gravemente enfermo, em consequência da tuberculose. Ela passara dias e noites ao lado do pai doente, até que ela própria adoeceu. A mãe de Bertha depositou todas as suas esperanças de cura de sua filha no famoso médico, interessado na histeria, no uso da catarse e da hipnose. O tratamento durou de 1880 até 1882 e somente em 1895 foi publicado como o caso Anna O., numa parceria de Freud com seu amigo Breuer.
A histeria era a doença exemplar da época Vitoriana. A psicanálise ainda não existia. Sendo primeiramente Bertha Pappenheim uma jovem culta, poliglota que interrompe o ciclo da hipnose com o que ela chamou de “talking cure” que permitia a “chimney sweeping”. Assim, falar sem ser interrompida, “limpando a chaminé” ajudava a diluir os seus sintomas. Do total mutismo até as falas em inglês, francês, italiano, alemão muito pode ser revelado. Porém após três meses de tratamento, o pai de Bertha morre, fazendo com que os sintomas se agravassem. Ela para de comer, de beber e a ideia de suicídio se fez presente. Por precaução, a família se muda para uma propriedade no campo. Apesar da distância de Viena, Breuer não se afastou e prosseguiu no tratamento.
Mas um fato intrigante interrompe a presença do tão dedicado Breuer, quando Bertha, já praticamente livre de seus graves sintomas, começa se contorcer com dores abdominais. Breuer a observa e ela lhe diz: “agora vem o filho do Dr. Breuer”. Preocupado, ele abandona o seu lugar e indica o seu colega Robert Biswanger, que a interna numa clínica. Depois de alguns anos após ter abandonado o caso, Breuer revela a Freud o episódio da “gravidez de Bertha”. Freud publica em 1891 os Estudos sobre Afasia e consegue convencer o relutante Breuer a publicarem o Caso Anna O. Freud já convencido da importância da sexualidade na origem dos sintomas histéricos não consegue que Breuer aceite a presença do sexual na etiologia da histeria. A não aceitação de Breuer da teoria da sexualidade proposta por Freud e a profunda amizade que este já estabelecera com Fliess, que aceitava a sexualidade na origem das neuroses podem explicar, em parte, a separação dos dois amigos.
No caso Anna O., Bertha Pappenheim era uma jovem religiosa, recatada e tímida, sofria extremo controle dos pais; ela queria dançar, escrever, ir a bailes, sair de casa, porém seus pais a impediam. Com a doença do pai e todas essas tensões, ela acabou expondo todo o seu sofrimento quando emudeceu, parou de se alimentar, paralisou seus movimentos; todos esses sintomas acabaram por despertar uma sexualidade adormecida, recalcada. A suposta gravidez era uma prova concreta do amor de transferência.
Bertha teve vários comprometimentos em sua trajetória de vida, como não podia vivenciar seus desejos, acaba por adquirir uma histeria de uso de identificação projetiva; ela não vivenciou as identificações parentais, pois seus pais exerceram um extremo controle na sua vida, podando-a de viver sua vida. Isso tudo a leva a um aspecto central da histeria, uma identificação fantasiada, refletida em sintomas na vida cotidiana. Com a morte de seu adorado pai, tudo vem à tona.
Segundo Freud, em suas pesquisas baseadas em análises de casos clínicos neuróticos, tem como evidência a importância das identificações parentais e do complexo de castração, o que nas meninas pode ser sentido como um dano sofrido por ter nascido sem pênis, que ela tenta compensar ou reparar. O complexo de castração ocorre com meninos e meninas, embora cada gênero o experimente de forma diferente. Graças a essa experiência psíquica, a criança aprende a diferenciar os sexos e reconhecer pela primeira vez os desejos impossíveis.
Na menina, o complexo de castração despertado pela visão do pênis nos meninos a levará a um sentimento de inferioridade e a querer compensar sua falta pela inveja do pênis. No menino, o complexo de castração o faz abandonar os desejos edipianos; já na menina, ao invés disto, o complexo de castração a faz voltar-se para o pai para tentar substituir a falta do pênis: o desejo de ter um filho do pai, como substituto do pênis é, portanto, o promotor do Édipo feminino.
Segundo a psicanálise, se o Complexo de Electra não for corretamente ultrapassado, a menina pode enfrentar diversos problemas na vida adulta, como dificuldade em lidar com relacionamentos amorosos, dificuldades em assumir responsabilidades, projetar a figura paterna nos seus relacionamentos futuros ou até criar uma relação conflituosa com a própria mãe. Para que ocorra uma superação do Complexo de Electra, é aconselhável que os pais conversem com a filha sobre o amor, ajudando-a a diferenciar os tipos de sentimentos que existem entre pai-filha e marido-esposa.
Bertha Pappenheim forneceu referências e fundamentos sobre os sintomas histéricos e como entendê-los, juntamente com a visão tão apurada de Sigmund Freud, foi um grande legado para psicanálise.
Karina Statuti | Psicanalista
Referência bibliográfica
ZIMERMAN, D. E. Fundamentos Psicanalíticos [recurso eletrônico]: Teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 2007.
Editado também como livro impresso em 1999.
ISBN 978-85-363-0814-2